Na manhã do último domingo, 26 de julho, aos 91 anos, morreu a artista plástica Tereza Costa Rêgo. Muito além de uma das maiores referências em arte modernista do país, Tereza foi sinônimo de afeto e generosidade para muitos que cruzaram seu caminho. “Mostrei o bordado que fiz, ela disse: você pinta? Você devia pintar. Eu a achei tão livre dentro de si. Tão generosa e acessível. Passei a querer pintar mais. Às vezes, quando pinto, penso nela e naqueles poucos instantes que tivemos uma relação de afeto”, relatou a artista pernambucana Clara Nogueira, em uma das várias homenagens que Tereza recebeu ontem nas redes sociais.
Moradora do sítio histórico de Olinda, cidade que considerava sua pátria, Tereza deixa duas filhas, três netos, uma bisneta, uma legião de amores, admiradores e uma obra que seguirá viva como patrimônio cultural pernambucano. Para o amigo e artista João Câmara, “o tempo não a venceu”. Publicamos aqui uma matéria especial da Revista Conexão Fachesf de setembro de 2018, que retratou a vitalidade de uma artista produtiva e sintonizada com seu tempo. As fotos são de Alexandre Severo, tiradas em 2010. O texto é da jornalista Olívia Mindêlo, com quem manteve uma relação de amizade e afeto por onze anos.
A vitalidade de uma artista incansável
Era quase duas horas da manhã e Tereza Costa Rêgo ainda estava pintando. Com ajuda do neto Daniel, seguia madrugada adentro dando as últimas pinceladas na tela que entregaria a um comprador ansioso dali a poucas horas. “Fiz uma coisa doida da minha cabeça. É um bicho encarnado com uma cabeça de lagartixa que vai, vai, vai e termina com dois tatus. Fiquei emocionada quando assinei esse quadro”, conta a artista plástica, buscando descrever a obra recém-concluída de 1 m de altura por 2,5 m de largura.
Parece algo simples ao dia a dia de uma pintora, não fosse ela uma mulher de 89 anos que subverte qualquer previsão da medicina e expectativa de uma vida comum nessa faixa etária. Basta olhar para Tereza e perceber, sem muito esforço, seu brilho, e vitalidade: está no olhar que tudo observa, na conversa rápida, na mente sagaz. Dona de uma força e beleza impressionantes, é uma sedutora profissional. E transmite isso ao que pinta.
O vermelho marcante de suas telas atrai quem se dispõe a contemplá-las e entregam a personalidade intensa de Tereza. A cor rubra é, para ela, uma verdadeira obsessão. Em sua casa, está por toda parte: das paredes repletas das telas assinadas por ela às xícaras, pratos e toalha de mesa. A artista cultiva um cuidado fora do comum pela estética e tem um senso de espaço onde nada se põe ao acaso, nada passa batido.
Tereza Costa Rêgo também é inquietude da cabeça aos pés, a própria encarnação da vontade de viver e isso não vem de hoje. Nascida no Recife, em 28 de abril de 1929, a artista rompeu, ainda jovem, com o destino reservado a pessoas como ela, vindas ao mundo pelo seio da aristocracia pernambucana e destinadas a reproduzir a própria condição social. Única mulher de uma família de cinco filhos – a “mais moça”, como ela diz –, conta ter escolhido “o voo, em vez do ninho”, seu lema de vida.
Vocação para fênix
No início dessa história, porém, a bela e jovem Terezinha rezou a cartilha dos bons costumes: casou-se com um jurista com quem figurava nos principais eventos e colunas sociais da cidade. “Tinha uma porção de criados aos meus pés, 24 horas por dia”, recorda, sem nenhuma nostalgia. Desse casamento, nasceram suas duas únicas filhas, Maria Tereza e Laura – foi mãe cedo, aos 20 anos. Depois, quis Terezinha, contudo, que seu destino fosse diferente, atirando-se contra a maré que já a enredava dentro dos padrões da “bela, recatada e do lar”.
Ela já era casada e pintora da Escola de Belas Artes do Recife quando conheceu o líder comunista e engenheiro Diógenes Arruda, que depois de ser perseguido na Era Vargas, enfrentaria a segunda ditadura do país, nos anos 1960. Eles se conheceram em um dos eventos sociais da casa de Tereza e, a partir dali, tudo mudaria na vida da artista. “Foi uma coisa muito violenta. Fiquei doida e ele também; a danação foi enorme”, conta a artista na sua biografia Tereza Costa Rêgo, uma mulher em três tempos, escrita por Bruno Albertim e recém-lançada pela Cepe Editora.
Tempos depois desse encontro, ela se lançava com Diógenes na vida clandestina. Desquitou-se e partiu, deixando no Recife o ex-marido e as filhas, com as quais viria a se encontrar eventualmente. Sua escolha, claro, teve uma reação: sofreu todas os rechaços sociais, sobretudo em sua família, na qual imperava a tradicional moral cristã. Foi mal falada e praticamente eliminada de todo o convívio.
Seguindo seu caminho sob o codinome de Joana, a companheira de Diógenes começou a dar passos de independência e assumiu um papel de vanguarda nos tempos de um Brasil extremamente conservador. Morou em São Paulo, exilou-se no Chile e, posteriormente, fixou-se na França. Nesse período de luta e solidão, graduou-se em História e concluiu mestrado em Sorbonne, conceituada universidade de Paris.
Ela só voltou ao Brasil no processo de redemocratização política, em fins dos anos 1970. Desta vez, a vida lhe deu um golpe tremendo e inesperado: o casal estava saindo do aeroporto de São Paulo, recém-chegado da Europa, quando Diógenes teve um infarto fulminante, vindo a morrer aos 64 anos de idade. Ficção alguma parece dar conta da dor de Tereza, decidida a deixar de ser “mulher de alguém” para ser apenas Tereza Costa Rêgo.
“Eu tinha duas mãos e a pintura”, narra a artista. Em sua vocação de fênix, escolheu morar num sobrado em ruínas na Rua do Amparo, na cidade de Olinda. Retornava, assim, às suas origens. Era começo da década de 1980 e, naquela época, a Cidade Alta já era reduto de artistas, a quem ela decidiu se juntar para dar continuidade à carreira de pintora. Aos 50 e poucos anos, nascia como uma nova mulher.
O segredo da vitalidade
No sítio histórico, Tereza se reinventou como pessoa (agora mãe e avó) e artista. Em seu novo ateliê, pintou, no ano de 1981, a obra A partida (técnica mista sobre madeira 0,80 m x 2,20 m), na qual uma mulher ruiva se debruça despida sobre o cadáver de seu amado, numa alusão direta à morte precoce de Diógenes. O processo do trabalho foi uma catarse para Tereza, pois o fundo do quadro é feito com colagem das cartas que o companheiro lhe escrevera. Em 1983, ela pintaria outro clássico de sua trajetória: Mulher nua com gatos (óleo e acrílica sobre madeira, 0,8 x 1,20 m), seu primeiro nu frontal. Dali em diante, não pararia mais, amadurecendo um inconfundível estilo pictórico.
Vem dessa época o mergulho definitivo no vermelho. A cor é o ponto de partida e chegada de suas pinturas, feitas sobre uma superfície coberta inicialmente de preto para só depois se tornar rubra, pois foi assim que Tereza descobriu a técnica de como alcançar o tom certo de sua paleta.
Desse recurso estético, enveredou mais a fundo na arte modernista, pintando obras célebres, como o painel Boi voador (acrílica sobre madeira, 1,60 x 4,40 m), de 1992; Batalha dos Guararapes (acrílica sobre madeira, 1,60 x 4,40 m), de 1999; Ceia larga brasileira ou a Pátria nua (óleo sobre tela, 2,45 x 5,55 m, 1999); e a monumental Apocalipse de Tereza, uma grande serpente feita em tinta acrílica sobre uma superfície de madeira medindo 1,60 m de altura por 12 metros de largura. A obra marcou seu aniversário de 80 anos e, desde então, ela já produziu outros trabalhos de grandes dimensões, incluindo outro painel magistral, Mulheres de Tejucupapo, com 2,2 m x 8 m, que demorou cerca de quatro anos para ser concluído.
Qual o segredo para continuar tão ativa perto dos 90 anos? Tereza brinca, dizendo que a receita da vitalidade é uma taça de vinho e um pote de creme. Além disso, gosta de conviver com pessoas mais jovens. Seu projeto para o ano que vem é criar uma série baseada nos sete pecados capitais, desdobrando os temas bíblicos que continuam a perseguir, de forma crítica, como assunto inesgotável de sua obra. Não resta dúvidas de que é a arte que a mantém de pé, com muita bravura.
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