O médico carioca Alexandre Kalache é um dos mais importantes especialistas em envelhecimento do mundo. Há mais de 40 anos, defende com paixão que “envelhecer é bom, morrer cedo é que não presta”. Sua trajetória profissional fala por si: fez mestrado e doutorado nas universidades de Londres e Oxford — onde ensinou políticas públicas relacionadas à longevidade — e dirigiu por 13 anos o programa global de envelhecimento da Organização Mundial de Saúde (OMS), na Suíça. Hoje atua como consultor internacional para agências da Organização das Nações Unidas (ONU), governos e universidades do Brasil, Canadá, Espanha, Cingapura, Filipinas e Austrália.
Durante toda sua trajetória profissional, Kalache escutou e observou os idosos. Até que se tornou um deles. Hoje, aos 74 anos, vive na prática o discurso que há décadas defende; é um exemplo de alguém que escolheu envelhecer ativamente. O especialista apresenta um programa de rádio CBN, profere inúmeras palestras e preside o Centro Internacional de Longevidade (CILs) Brasil, organização dedicada a produzir conhecimento para soluções relacionadas ao envelhecimento populacional. Em sua rotina, pode passar por cinco cidades diferentes em uma única semana. Tudo isso sem perder a leveza. “Trabalho porque me motiva e me emociona. Com minha idade, não preciso provar mais nada a ninguém. O que quero é deixar um legado”, diz.
Depois de décadas no exterior, em 2012, Kalache voltou a morar no Rio de Janeiro para cuidar da mãe, Lourdes, 100 anos. Apesar da residência em Copacabana, passa mais tempo entre aviões e aeroportos: é co-presidente da Aliança Global de CILs, em Londres e composta por centros de longevidade em 17 países. De passagem pelo Recife em junho de 2018, conversou com a reportagem da Conexão Fachesf sobre o tema que tanto lhe fascina.
Conexão Fachesf — O senhor diz que estamos vivendo uma revolução na longevidade. O que isso significa em termos práticos?
Alexandre Kalache — Estamos aumentando a expectativa de vida de forma extraordinária. Em 1945, quando nasci, essa estimativa era de 43 anos. Hoje passamos de 76. Costumo dizer que são 33 anos a mais de vida, não 33 anos de velhice. No passado, a vida mais curta podia ser comparada a uma corrida de 100 metros: como dava para enxergar a reta final, corria-se com todo o gás para chegar lá. Já a vida mais longa dos nossos tempos é uma maratona; exige estratégia e planejamento. Esse tempo a mais pode ser maravilhoso, mas pode também se transformar num fardo se você não se preparar corretamente. Afinal de contas, de que adianta viver mais se não for para viver bem?
CF — Você defende a necessidade de investir no processo de envelhecimento. Existe um manual para envelhecer bem?
AK — Precisamos observar a velhice a partir de uma perspectiva de curso de vida. Não se fica velho de repente; você vai ser velho de acordo com as escolhas que faz ao longo do tempo. Isso é o que difere duas pessoas que chegam à mesma idade com situações distintas. Para envelhecer bem, são necessários quatro capitais essenciais. O primeiro deles é a saúde, que deve ser uma prioridade desde cedo. O segundo é o capital de conhecimento, fundamental para continuar sendo um recurso ativo para a sociedade; quem não permanecer em aprendizado ficará obsoleto não aos 70, mas aos 40 anos, quando provavelmente perderá o emprego porque parou no tempo. O terceiro pilar é o capital social, as relações afetivas. Pode ser que, no fim da vida, você precise de alguém que lhe cuide. Se não tiver pessoas que sustentem uma rede de apoio, isso vai ser complicado. O quarto capital para envelhecer bem é o financeiro, o que nos garantirá uma velhice confortável. Claro que isso é um enorme desafio pois, além da profunda desigualdade social brasileira, não temos a cultura de poupar pensando no futuro. Depois disso tudo, ainda tem uma questão essencial: precisamos ter um propósito de vida. Senão, para que envelhecer?
CF — O que você chama de propósito de vida?
AK — Propósito é saber por que acordamos de manhã e perceber a diferença que fazemos na vida de quem amamos e de quem nos ama; é pensar no que podemos fazer pelo bem-estar coletivo daqueles que não têm os privilégios que temos de acesso à educação, saúde, cuidados básicos. Vivemos num país com muitas necessidades sociais. Sempre há algo importante a ser realizado. E não precisa ser advogado, médico ou engenheiro para deixar um legado. Você pode fazer diferença na sua comunidade sendo mecânico de automóvel ou garçom. O essencial é desenvolver, no cotidiano, pequenas ações que desencadeiem o bem coletivo. Acredito que o somatório dessas ações talvez possam ajudar nosso país a sair da mediocridade que vivemos.
CF — O que o senhor diria para alguém de 60 anos que não se preocupou em acumular esses quatro capitais necessários para o bem envelhecer?
AK — Sempre repito o mantra: quanto mais cedo você começar a se preparar, melhor; porém, nunca é tarde demais. Não começou nos 20? Inicie aos 30. Também não foi aos 30? Que seja nos 50. Quem deu esse primeiro passo mais cedo vai ter mais ganhos, claro. No entanto, não significa que um sedentário, que come mal e está fazendo tudo errado, não possa dar uma melhorada. Mas reforço que precisamos de políticas públicas disponíveis a ajudar as pessoas a terem acesso a essas opções mais saudáveis de vida.
CF — Como o senhor vê o impacto trazido pelas mudanças no sistema nacional de previdência para os brasileiros?
AK — A seguridade social nasceu na Alemanha e alguém traduziu o termo do alemão de um jeito absurdo: em português, a palavra virou aposentadoria, o que é uma perversidade. Sabe aquelas casas antigas que tinham um aposento lá no fundo? Era ali onde ficava o velho, excluído da sociedade, esquecido. Eu quero sair do aposento; quero ir para a sala da frente, participar, ser protagonista da minha família e da sociedade. Isso implica também em ter deveres, não só privilégios. E um dos deveres é continuar ativo, sendo um recurso para a comunidade. Que egoísmo é esse achar que você pode trabalhar 25 anos e depois viver mais 40 como aposentado?
Precisamos, com urgência, debater o sistema previdenciário brasileiro. É uma pena que a discussão sobre a reforma tenha sido encaminhada de forma tão equivocada, abrindo exceções para determinados grupos. Nossa idade média de aposentadoria (54 anos) é insustentável para a expectativa de vida que temos. Chegaremos em 2050 com um população de 64 milhões de pessoas acima de 60 anos. O Brasil não conseguirá dar certo se mantivermos, por exemplo, privilégios de aposentadorias precoces.
CF — Quais os benefícios do convívio entre as gerações de jovens e as dos idosos?
Experiência é uma coisa que você só adquire experimentando; a vida se faz vivendo, o caminho se faz caminhando. Essa é a melhor troca. Meu interesse hoje é deixar um legado, ajudar, inspirar, ser mentor; coisas que, aos 30, eu não tinha oportunidade de fazer porque ainda não tinha vivido tudo isso. Mas nem toda pessoa idosa tem essa experiência para compartilhar porque muitos passaram a vida toda na mesmice. Você tem que aceitar novos desafios para que possa contribuir nessa troca intergeracional.
CF — Durante o último congresso brasileiro de Geriatria e Gerontologia, o senhor falou sobre resiliência. O que isso tem a ver com velhice?
AK — Resiliência é um conceito chave para que você possa envelhecer bem. Trata-se da capacidade de dar a volta por cima, de ultrapassar os desafios que a vida coloca no caminho e de seguir aprendendo. Se eu amasso uma flor de papel, ela fica amassada. Se eu amasso uma flor de plástico, ela volta mais ou menos ao seu formato inicial. Isso é resiliência; essa capacidade de encarar os desafios e as perdas que a longa vida promete.
CF — O brasileiro pensa em velhice?
AK –No geral, nossa cultura é imediatista e empurra as coisas com a barriga. Queremos o prazer do agora sem pensar nas consequências que chegarão depois. Isso vale tanto para nossa péssima educação financeira quanto para a falta de cuidado com a saúde. Há uma palavra que combina muito com longevidade, que é a solidariedade. Precisamos exercer essa solidariedade com as pessoas que estão ao nosso redor e também conosco. Precisamos aprender a gostar mais de nós mesmos porque, no fim, isso é o que vai definir nossa qualidade de vida. Como é possível praticar o autocuidado se você não gosta de si? Sem amor próprio, fica difícil envelhecer bem.
CF — Segundo a Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética, o Brasil é o país com a segunda maior taxa de cirurgias plásticas e procedimentos estéticos faciais do mundo. Por que temos tanto medo de envelhecer?
Esse título fala muito do hedonismo de nossa sociedade: quanto mais esticado, melhor. Vemos muitas pessoas indo às academias de ginástica não para se manterem saudáveis e poderem envelhecer melhor, mas para atingirem o objetivo de ficar saradas, bonitas e atraentes. Precisamos aprender a termos orgulho de ficar velhos. Essas rugas que você vê em mim predizem um passado de experiências maravilhosas; falam das experiências que eu não poderia ter tido aos 20 ou 30 anos. Porém em vez de valorizarmos e celebrarmos essas conquistas, tentamos esconder nossas idade. Devemos abraçar o envelhecimento focando no que ele traz de bom porque essa é a melhor coisa que pode nos acontecer; sua única alternativa é morrer cedo.
CF — Mesmo para quem consegue envelhecer ativamente, a velhice é uma época de perdas de familiares e amigos. Como lidar com a iminência da morte?
CF — No Brasil, não se discute a morte; fazemos o possível para evitar essa questão, mesmo sendo nossa única certeza na vida. Os profissionais de saúde não estão preparados para assistir o paciente na hora da morte e isso precisa ser trabalhado. Não quero morrer num centro de tratamento intensivo com tubos em todos os meus orifícios, prolongando em algumas horas, dias ou semanas, a minha partida. Para evitar isso, converse com seus familiares e amigos mais próximos. Também deixe instrumentos legais, por escrito, que expressem sua vontade caso passe por situação de demência ou inconsciência. É o que chamamos de diretrizes da vontade antecipada.
CF — O senhor diz que precisamos desenvolver uma “cultura do cuidado”. O que é isso?
CF — É ter responsabilidade social e coletiva pelo outro desde a infância até a velhice. Com uma expectativa de vida crescente, teremos cada vez mais pessoas precisando de assistência. Precisamos fomentar essa cultura de cuidar, pensando, inclusive, sob uma perspectiva de gênero. No Brasil, é a mulher quem cuida. Quando criança, enquanto me deram uma pistola para atirar e uma bola para chutar, minha irmã ganhou bonecas. Cresci ouvindo que “menino não chora”. Sabe o que acontece? O menino cresce e, 60 anos depois, quando tem uma dor no coração, fica calado porque não pode mostrar fraqueza. Eu precisei me auto educar para saber que também sou parte do cuidado, não somente um recebedor dele. E não digo isso por ser médico. Os homens têm de participar dessa revolução e passar a cuidar mais dos outros.
Quer mais conteúdo? Confira a entrevista exclusiva de Alexandre Kalache para a Fachesf. https://www.youtube.com/watch?v=gB_ZsQb9tJE&feature=emb_title
SEM COMENTÁRIOS