Roberto Lúcio gosta de contar que foi o cheiro da tinta que o fisgou para a pintura. Ao sentir os químicos exalando no ar, seu olfato se atravessou no caminho e imediatamente lhe comunicou: aquilo era um chamado – e o caminho não tinha volta. A atração foi tão forte, que hoje, mais de cinco décadas depois, o artista não lembra o dia em que ficou sem pintar. Aos 78 anos, esse paraibano que adotou Olinda como morada celebra seu lugar no mundo travando batalhas com os pincéis – e ganha dinheiro fazendo isso.
Para esse criador profissional, o encontro das tintas com as telas lhe traz o inesperado. E quanto mais demora nesse processo, mais o elemento-surpresa vai se revelando. “É desafio o tempo todo e o resultado, de um prazer sem tamanho.” Quem compartilha esse depoimento é alguém que não se importa em viver sozinho num sobrado histórico, onde está sua cama, seu ateliê e uma vista para o Recife. Aliás, essa foi uma escolha muito bem-pensada por Roberto Lúcio, que poderíamos dizer ser um romântico lobo solitário. “Já fui casado, me separei, tive namorada, cada qual na sua casa. Eu não sei trabalhar com ninguém me olhando.” Conta ainda o artista que costuma se dar ao luxo de acordar na hora que quer, trabalhar sem pressa, tendo hoje, depois de muita luta, um padrão de vida de quem “não precisa vender (uma obra) todo mês” para sobreviver.
Quando come em casa, vive uma verdadeira experiência estética de autocuidado. Para a comida, “o prato mais bonito”; para o vinho, “a melhor taça”. Assim nos conta sobre sua mesa vistosa, onde faz as refeições sozinho, sempre procurando agradar os olhos e paladar. Para ele, a criatividade está certamente associada ao bem-viver, porque “a vida foi feita para a gente ter prazer em viver. Se não tiver, não vale a pena”. Ele diz que isso inclui tudo: desde a música que coloca para pintar até o seu maior divertimento hoje, que é dançar. Praticante de dança de salão há cerca de 10 anos, Roberto costuma acompanhar gente de toda idade, seja nas aulas semanais que frequenta, seja nos salões dos clubes que vai nos finais de semana. É salsa, bolero, samba de gafieira e por aí vai. Não faltam vitalidade e disposição no corpo de quase 80 anos. “É a genética, é a sorte também, tanta coisa”, especula o artista sobre seu estilo de vida.
A pandemia do novo coronavírus mudou a rotina do artista, que passou a acumular outras funções e trabalho no cotidiano. Foi preciso se dedicar não só a suas pinturas, mas à própria casa, fazendo serviços domésticos dos quais nunca se dera conta antes. Com a diarista dispensada, a casa ficou mesmo só para ele e, segundo diz, está puxado. “Estou fazendo tudo, tenho sido um faxineiro. Estou trabalhando mais do que antes. Acho que a gente vai ter que repensar muita coisa daqui pra frente. Nas relações, isso está mexendo com tudo.”
TRAJETÓRIA
A vida artística de Roberto Lúcio começou no fim dos anos 1960, logo depois de ele ter se mudado de João Pessoa para o Recife. Cursou licenciatura em Desenho na UFPE e, em 1968, começou a estudar na Escola de Belas Artes e, aos poucos, a participar de mostras e salões com suas obras. Nesse momento, a pintura e as artes gráficas logo também lhe chamaram atenção e ele começou a trabalhar na área, montando depois, com amigos, um escritório de programação visual (que hoje damos o nome de design) no centro da cidade. Em paralelo, sempre mantinha seu trabalho como pintor.
O artista e crítico de arte Raul Córdula nos conta, em seu livro A utopia do olhar, que a pintura inicial de Roberto Lúcio era figurativa – muito pela influência das lições da Escola de Belas Artes e do pintor e amigo João Câmara, de quem foi vizinho durante muitos anos, na Rua de São Francisco, na Cidade Alta. Mas Córdula também nos informa que isso durou pouco: “Roberto encontrou outro caminho a partir de suas experimentações estéticas e de seu contato direto com a indústria e com a gráfica”. “Na indústria, ele fez estamparias para tecidos nas mesmas fábricas onde trabalhara Maria Carmem (artista já falecida)”, continua Raul, referindo-se ao emprego onde Roberto foi mais bem-remunerado. A já extinta Fábrica de Tecidos de Camaragibe, na Região Metropolitana do Recife, ou a Companhia Industrial de Pernambuco, foi a empresa onde o artista passou cerca de seis anos da vida criando estamparia para tecidos, de padrões geométricos a florais. O trabalho o levou a outros e depois também passou a fazer motivos para azulejos. Hoje, sua pintura é abstrata e se baseia em elementos urbanos, como os tapumes.
Essa história com estamparia foi possivelmente nos anos 1980. Ele não lembra bem. Roberto Lúcio é bom em viver, mas ruim em decorar datas. Alguém que já fez de um tudo: além de designer gráfico, foi também professor de Arte da UFPB. Durante um tempo, manteve uma confecção caseira de sapatos. Como artista, acumula no currículo exposições na Alemanha, nos Estados Unidos e em várias cidades do Brasil, como São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, João Pessoa. Ex-peladeiro e hoje “pé de valsa”. Já fez cirurgia no coração, mas não tem quem diga. Agora pai e também avô, diz que sempre gostou de andar “com gente mais velha”, com quem aprendeu muito. Pode-se dizer que a arte o faz viver intensamente, prolonga a vida, lhe dá sustento. Pode-se dizer também que até aqui foi muito bem-sucedido em sua principal escolha de viver a sentir o cheiro da tinta até o fim dos seus dias.
Com a colaboração de Olívia Mindêlo.
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